Extermínios de povos indígenas, torturas, estupros contra mulheres, disseminação proposital de doenças e verdadeiras caçadas humanas com uso até de dinamites. Parece cena de guerra, mas esses são apenas alguns dos crimes contra povos indígenas de todo o Brasil entre os anos de 1946 e 1988 relatados no Relatório Figueiredo. Reencontrado há 10 anos, documento acende esperança para que governo foque nas questões indígenas durante nova gestão. Tendo em vista que Mato Grosso do Sul é um dos estados que mais registra crimes contra povos indígenas, o documento é visto como ‘norteador’ para políticas públicas, além de contribuir na criação de comissão para investigar o passado a fim de evitar violências futuras.
Você já ouviu falar neste documento? O Relatório Figueiredo apurou as matanças de comunidades, torturas, submissão a condições de escravidão e outras crueldades cometidas contra indígenas em todo o Brasil. O que mais choca neste relatório é que esses crimes foram cometidos por latifundiários e funcionários do antigo SPI (Serviço de Proteção ao Índio) – que era destinado à proteção dos indígenas, aliás. Ou seja, eram pessoas comuns, pais e mães de famílias, que fizeram crueldades a outros seres humanos motivados pelo puro ódio à cor e ao preconceito de etnias.
Depois de mais de 40 anos desaparecido após incêndio no Ministério da Agricultura, que teria dado o documento como ‘eliminado’, o Relatório Figueiredo foi encontrado em abril de 2013 no Museu do Índio no Rio de Janeiro com mais de 7 mil páginas que mostram o genocídio cometido na época, algo que chocou a população com tamanho horror quando foi divulgado na mídia.
Dez anos depois do seu ressurgimento, Relatório é visto como norteador para ajudar a construir novas políticas públicas e de proteção ao direito indígena, especialmente agora com a implementação do Ministério dos Povos Indígenas no Brasil. Para o ativista Marcelo Zelic, responsável por encontrar o documento, a principal medida é a criação de Comissão Nacional Indígena, braço da Comissão da Verdade, para estudar melhor o passado para não repetir os erros no futuro. Em Mato Grosso do Sul, comissão seria imprescindível para proteger comunidades originárias contra violências.
Comissão Nacional Indígena da Verdade
Braço da Comissão da Verdade, que investigou as atrocidades cometidas no Brasil durante a Ditadura Militar, Zelic afirma que a criação da Comissão Nacional Indígena da Verdade seria uma das soluções para interromper invasões a territórios e genocídios de povos indígenas no Brasil, sobretudo em Mato Grosso do Sul, onde há grande violência contra esses povos. Isso porque comissão continuaria as investigações interrompidas principalmente durante os governos de Temer e Bolsonaro.
“Em Mato Grosso do Sul temos uma vasta documentação registrada e que infelizmente a comissão [Comissão da Verdade] não deu sequência ao que fazer com essas informações. São informações que contém no Relatório Figueiredo e até documentadas em Diários Oficiais do Estado, como doação ilegal de terra indígena a fazendeiros”, explica.
Na visão de Zelic, o Relatório denunciou gravíssimas violações de direitos humanos e mesmo depois de anos tais violências ainda são observadas. Como exemplo, ele cita o caso yanomami e ainda relaciona ao holocausto indígena ocorrido na época da Ditadura Militar.
“Uma comissão indígena vai apontar ao Estado quais são os mecanismos de não repetição para que os diretos indígenas sejam respeitados e o relatório [Figueiredo] é parte disso porque ainda continua em aberto com suas denúncias. Ao menos 42 processos estão escondidos e os crimes continuam totalmente impunes contra pessoas indígenas. Até 2026 é um período importante para o país porque a comissão seria ferramenta para diálogo porque a violência continua”.
Apesar de ainda não ter sido criada, a comissão já está na pauta do novo governo e ganhou ainda mais força com a criação do Ministério dos Povos Indígenas.
Crimes impactam até hoje
A violência contra povos indígenas é permanente, afinal, ela não acabou quando se encerrou a ditadura no território brasileiro. Como exemplo, o ativista menciona a ação contra os yanomami ocorrida em 1988 que atacou a saúde da comunidade para o garimpo entrar no território. Na época, mais de mil pessoas morreram. Então, 35 anos depois, a mesma situação é percebida no Brasil com as últimas denúncias de precariedade nas comunidades yanomamis do país.
Outro exemplo é citando justamente o antigo SPI, que atuou de forma aliada a fazendeiros, políticos e empresários para torturar e matar indígenas. “A atuação do presidente da Funai durante a pandemia é uma repetição da mesma violência do Relatório Figueiredo, quando mais de 100 funcionários do SPI foram processados por crimes. É preciso que o Estado brasileiro analise o que houve nos últimos quatro anos e discutir a responsabilização do Marcelo Xavier contra os povos indígenas para que a sociedade avence. É preciso respeitar o direito de todos e os indígenas fazem parte de todos”.
Roubo de terras, bestialidade e tortura: o horror do Relatório Figueiredo
A investigação documentada no Relatório Figueiredo, feita em plena ditadura, a pedido do então ministro do Interior, Albuquerque Lima, em 1967, foi o resultado de uma expedição que percorreu mais de 16 mil quilômetros, entrevistou dezenas de agentes do SPI e visitou mais de 130 postos indígenas.
Os relatos documentados nas 7 mil páginas retratam o verdadeiro horror vivido por comunidades indígenas de todo o Brasil, inclusive em Mato Grosso do Sul, uma vez que pessoas eram consideradas abaixo dos níveis dos animais.