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15/10/2024
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    Bilac e Pompeia: esplendor e sepultura

    Alguns intelectuais da “pós-contemporaneidade” têm explicitado que a nossa evolução como espécie deve-se sobretudo à linguagem e que esta muito se desenvolveu em razão da coscuvilhice, isto é, da popular fofoca.

    É inegável, segundo eles, que a tecedura impregna nosso quotidiano e traz-nos análise, tristeza, felicidade, aflição ou diversão, e assim sucessivamente, conforme o caso. As informações daí derivadas acumulam-se e são repassadas de um para outro, forjando um acervo historiográfico que expandiria a nossa visão de mundo. De acordo com tais estudiosos, seria ingênuo supor que as pessoas não se interessam pela vida alheia, especialmente quando fatos importantes à sociedade a que pertencem derivaram dessas trajetórias humanas, ainda que de pequenos lances.

    Nessa contextura, relatar-se-á, de modo liliputiano e superficial, uma dessas mixórdias entre dois próceres da “Última flor do Lácio, inculta e bela” que “És, a um tempo, esplendor e sepultura”.

    Com efeito, Olavo Braz Martins dos Guimarães Bilac e Raul d’Ávila Pompeia figuram no panteão dos maiores escritores brasileiros. Não há como abordar a literatura vernácula e seus principais ângulos, sem compulsar e estudar a obra desses conspícuos literatos. Quiçá não muitos atualmente saibam que ambos eram antípodas, verdadeiros inimigos figadais, e que isso gerou grande repercussão, à época da proclamação da República.

    Bilac e Raul Pompeia nasceram no Estado do Rio de Janeiro. Eram coevos e ostentavam ideologias políticas muito distintas. O primeiro, aos 15 anos de idade, foi admitido na Faculdade de Medicina, onde cursou até o 4º ano e desistiu. Alguns chegam a insinuar que assim o fez, porquanto seria necrófilo e sua atração mórbida pelos mortos o teria impedido de prosseguir nos estudos anatômicos com cadáveres, com os quais manteria relações sexuais; o segundo estudou no Colégio Pedro II (até hoje previsto na nossa Constituição Federal de 1988 e por ela preservado – art. 242, § 2º) e foi cursar direito na prestigiada Faculdade do Largo São Francisco, na cidade de São Paulo.

    Abnegados às letras e às causas políticas, encontraram-se em caminhos opostos e tornaram-se adversários ferrenhos e declarados.

    Bilac começou a escrever em periódicos e foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, idealizador da cadeira de n. 15, tendo sido o seu primeiro ocupante, malgrado Gonçalves Dias seja o patrono dela. Coube-lhe suceder o insuperável Joaquim Maria Machado de Assis, na coluna “A Semana”, da Gazeta de Notícias. Engajou-se em campanhas cívicas de grande projeção como a do serviço militar obrigatório e é autor da letra do Hino à Bandeira. Em 1º de março de 1913, num concurso da Revista Fon-Fon, foi sufragado “O Príncipe dos Poetas Brasileiros”. Autor parnasiano, publicou, dentre outras significativas, “Poesias”, em cujo bojo encontram-se os sonetos “Via Láctea” e “Profissão de fé”.

    Por outro lado, Raul Pompeia era abolicionista, republicano, florianista e assaz controverso. Na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, envolveu-se em várias balbúrdias, ora tendo desentendimentos com seus colegas do corpo discente, ora com os docentes, sendo perseguido. Para concluir o curso, fazendo o trajeto inverso de Rui Barbosa (“O Águia de Haia”) e de Castro Alves (“O Poeta dos Escravos”), teve de transferir-se para a Faculdade de Direito do Recife, onde se formou, mas levou consigo outros estudantes. Sua obra-prima é “O Ateneu”, de característica realista/naturalista. Com caráter autobiográfico, o livro tece uma crítica mordaz à sociedade imperial daquela quadra histórica e revela um ensino opressor, sexualizado, refletindo o lado perverso e sombrio das pessoas e das instituições. Narrado em 1ª pessoa, tem como protagonista Sérgio, que logo no introito pontua:

    “- Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta.”

    Este opúsculo incendiou as classes abastadas, causando-lhes furor e foi alvo de censuras contundentes, já que denotava as mazelas daquele segmento social. Por isso, Pompeia sofreu assaques que o acoimavam de homossexual, doidivanas e escalafobético.

    Aquele cenário histórico era bem instável e rumoroso. Logo após a proclamação da República, com breve interregno à frente da presidência, o Marechal Deodoro da Fonseca, sofrendo robusta oposição, fechou o Congresso Nacional, a 03 de novembro de 1891, quando quase eclodiu no país uma guerra civil. A Armada (Marinha) e os ferroviários da Central do Brasil, bem como setores da sociedade reagiram e isso levou Deodoro a renunciar, a 23 de novembro de 1891.

    Nesse eito, o também alagoano e vice-presidente Floriano Peixoto assumiu o poder; contudo uma parte do povo clamava por novas eleições, já que muitos externavam que, diante da renúncia de Deodoro ter sucedido antes de dois anos de sua posse, a Constituição vigente exigia novo pleito e, por conseguinte, o novo presidente deveria promovê-lo imediatamente. Este imbróglio dividiu opiniões e causou diversos movimentos contestatórios. Em 06 de abril de 1892, 13 oficiais-generais divulgaram um manifesto reivindicando novas eleições celeremente. Foram sumariamente destituídos. Governadores aliados a Deodoro também alimentavam as críticas. O “Marechal de Ferro” solapou todas as revoltas, sobretudo a da “Armada” e “A Revolução Federalista” e enviou tropas aos estados oponentes.

    Diante desse mosaico político efervescente, Raul Pompeia colocou-se a defender o governo Floriano, ao passo que Bilac o hostilizava, tendo sido até enclausurado durante meses na Fortaleza da Laje, no Rio de Janeiro.

    Em artigos de jornais, ambos iniciaram cáusticas e seriíssimas discussões; “O Príncipe dos Poetas” perdeu a compostura, tendo escrito, no Jornal O Combate, que seu desafeto estava ao lado do “Marechal de Ferro” porque “talvez seja amolecimento cerebral, pois que Raul Pompeia masturba-se…”; Pompeia retrucou gizando que o rival era incestuoso, apontando para as relações do parnasiano com seus sobrinhos. O clima era demasiadamente tenso…

    Pompeia sofrera muitas contumélias e fora alvo destacado dessas diatribes impiedosas dos que comungavam com a posição de Bilac. Por morar com a mãe, ser solteiro e nunca surgir em público com mulheres, chamavam-no de homossexual, de maricas, de masturbador.

    Com a morte de Floriano Peixoto, aos 56 anos de idade, em 29 de junho de 1895, e tendo Prudente de Morais demitido Raul Pompeia do cargo de Diretor da Biblioteca Nacional, a situação do literato agravou-se bastante. Desempregado, acuado por ataques herodianos, incompassíveis, sem apoio de amigos, Raul Pompeia, na noite de natal desse mesmo ano, entrou em seu escritório, apanhou uma arma de fogo e, mesmo estando na presença de sua mãe, atirou contra o próprio peito, tal qual Getúlio Vargas o faria a 24.08.1954; ceifou sua vida, aos 32 anos de idade, deixando um texto frisando que se tratava de um homem honrado. Encontrou o mundo e teve coragem para a luta, todavia não a suportou em suas profundas vilanias.

    Enquanto isso, Olavo Bilac prosseguiu ativo em seu círculo de imprensa e literário. Muito ligado a José do Patrocínio, o “Jornalista da Abolição” e proprietário do Jornal “A Cidade”, protagonizou o primeiro acidente de trânsito registrado no Brasil. Patrocínio havia trazido um veículo serpollet, em 1897, para nosso país. “O Príncipe dos Poetas” pediu-lhe para dirigir o automóvel, sentou-se à esquerda (à inglesa) e, numa curva, com a rapidez de 4km por hora, descontrolou-se e colidiu numa árvore, estando Patrocínio alojado no banco direito. Felizmente, ambos não se feriram, entretanto Bilac sentiu o soco e o peso do volante no seu peito.

    E, na Rua do Ouvidor, contava-se que Bilac experimentou, naquele choque, o fulgor lancinante da dor de ter martirizado um homem de honra. Os florianistas assinalavam, à boca miúda, que, assim como a “Última Flor do Lácio”, Bilac fomentou, a um tempo, o esplendor das nossas letras, como também acabou por ser um dos algozes que agravaram a angústia e o desequilíbrio que culminaram na “sepultura” de Raul Pompeia.

    Por ironia do destino e apesar de tudo, a história de nossa literatura colocou-os, praticamente de mãos dadas – consoante o poema de Drummond, juntos como colossos pelas qualidades singulares de suas obras e pela expressão genial de suas penas.

    (João Linhares, Promotor de Justiça)

     

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